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ESCRITOS

Esta é uma tradução de Ghostly Design, texto original de Silvio Lorusso, disponibilizada aqui sob a mesma licença que o original e com o consentimento do autor. A tradução é de Guilherme Souza.


design fantasmagórico //



O campo do design opera de acordo com uma convicção fundamental: de que aquilo que chamamos design tem uma existência não-ambígua. Tempos atrás, delimitar o design era fácil: enquanto a cafeteira moka apitando no fogão era design, as xícaras de cerâmica usadas para beber o café não eram. Design começou com a seriação e terminou com ela. Atualmente, as coisas são mais difíceis: o design escapou de sua clausura industrial para se tornar uma mentalidade, o que significa dizer que nossa mentalidade se tornou industrializada1. Os poucos objetos artesanais que ainda nos cercam devem ao design sua aura. O design os assombra.

O que quer que façamos ou encontremos — uma coisa, um arranjo de coisas, um procedimento para se arranjar tais coisas — é assombrado pelo design. Mesmo quando o design não está lá, ele já está lá. Portanto, o status ontológico do design é fantasmagórico. Mas o design é um fantasma peculiar, um que cobiça o mundo tangível dos viventes. O design é como o Geleia, o fantasma glutão d'Os Caça-Fantasmas: um espectro que aprecia engolir tanta comida quanto puder.

As interações do Geleia com o mundo material não são imperceptíveis: elas deixam um rastro de muco. Podemos interpretar alegoricamente tal secreção gelatinosa como a habilidade do design em re-conceitualizar coisas no interior de seu modo de compreensão: subitamente, uma pedra de seixo passa a ter forma e função, torna-se sujeita a um processo de aperfeiçoamento, um processo que é, por sua vez, sujeito a um método. O que aconteceu? O design digeriu a coisa: o seixo é agora um artefato, um objeto projetado. O metabolismo do design deixou sua marca mucosa e regurgitou aquilo que não pôde processar, a saber, a aura simbólica e ritual da coisa, sua cultura; substituída então pela cultura do design, com seus próprios símbolos e rituais equalizadores. A coisa é aparentemente a mesma, mas na realidade copletamente diferente.

Em 1963, o designer-polímata italiano Bruno Munari se divertiu descrevendo uma laranja, ervilhas e uma rosa como objetos industriais. Enquanto a laranja é vista como "um objeto quase perfeito", a rosa é considerada completamente inútil e complicada. A diversão inocente de Munari, um tipo de lição em design thinking e talvez uma crítica sutil da produção em massa, exemplifica a maneira real pela qual o design vem a reinterpretar e portanto alterar a realidade. Uma vez que tal reinterpretação aconteceu, é muito difícil pensar a realidade de outra maneira, para além da funcionalidade e eficiência2.

De acordo com a curadora de design Paola Antonelli, designers são "respeitosos, curiosos, generosos, e ávidos pelos corpos de conhecimento e expertise de outros campos, designers invadem sem colonizar. Em quem podemos confiar mais? Eles deveriam gerenciar o mundo."3 Ruha Benjamin parece discordar. Inquirida durante um workshop a oferecer uma definição de design, a socióloga sugeriu que "design é um projeto de colonização". Com isso ela dizia que design é usado para descrever tudo4. Descrição é de fato a forma que toma a digestão mucosa do design.

Como Paul Rodgers e Craig Bremner denunciam, "design não é produto nem serviço. Design ocorre em relação a todos e a tudo — ele descreve e conforma relações."5 Design procede através da formalização. Focando em uma das mais populares correntes do design atual, o design thinking, Benjamin aponta para a sua capacidade de encapsular qualquer forma de atividade, da organização de protestos à jornada de um usuário de um aplicativo bancário. O problema é que o design thinking é esquecido, não diferente do design em geral: ele negligencia histórias6. Novamente, Benjamin:

Se alguém necessita "subverter" o design, isso implica que um quadro dominante do design reina — e eu acho que uma das razões pelas quais reina é que conseguiu embutir toda e qualquer coisa por baixo de suas asas ágeis.

De acordo com a acadêmica estadunidense, há riscos associados ao design thinking, uma "filosofia guarda-chuva" que diminui formas mais amplas de atividade humana, apagando as genealogias das quais elas emergiram originalmente, cancelando o que Ezio Manzini chama de tradição7. É uma questão de hegemonia: "Se o discurso do design intende colonizar a atividade humana ou não, está promulgando um monopólio sobre a práxis e o pensamento criativos." As preocupações de Benjamin são especificamente relazionadas a questões raciais. Deste ponto de vista, ela pode enxergar a maneira pela qual o design esvazia o empoderamento: "Talvez precisemos exigir não designs libertadores, mas a velha e simples libertação. Muito retrô, talvez?"

Um senso de desilusão deriva parcialmente do entendimento de que o design pode ser, como o dinheiro, um equivalente geral: algo que sirva como conexão entre as coisas e portanto as distancia. Ele pode devorar contextos. Praticantes suspeita que o guarda-chuva é pequeno demais, que o design está em falta dos meios conceituais e práticos de englobar a atividade humana, e que tentar isso é em realidade fazer tabula rasa8. Design pode ser a última vanguarda bem-sucedida: um repúdio violento de histórias. Designers que tomam tal consciência logicamente desenvolvem uma síndrome de impostor, um impulsode resistir à assimilação do design. Isso é provavelmente uma das causas de muitos êxodos pessoais, sonhados ou realizados: ex-designers decidem engajar com a completude de uma certa atividade humana no interior de seu domínio específico e historicamente rico: a agricultura, a escrita, a cozinha... todas atividades que resistem à redução do "hacking rural", "design de conteúdo", ou "design de comida". Mais raramente, no entanto, o ato de descrição do design produz um enriquecimento: a seletividade do design permite a inclusão de vozes esquecidas, para a recombinação alegre de práticas austeras, para inéditas pontes entre contextos. Nestes raros casos, a "ignorãncia" do design verdadeiramente se torna sua alegria. No pior caso, o design achata uma multiplicidade de mundos em um único unidimensional e asséptico; no melhor, ele os nutre9.


  1. 1. Presume-se que esta mentalidade industrializada começou a emergir no ocidente no século 16, com o aparecimento dos primeiros livros reproduzidos mecanicamente.
  2. 2. Ervilhas são descritas como "pílulas de comida de vários diâmetros, embaladas em estojos duplamente valvulados, muito elegantes em forma, cor, material, semi-transparentes e fáceis de abrir." Munari, Bruno. 2010. Good design. Mantova: Corraini.
  3. 3. Paola Antonelli “Foreword”. In Midal, Alexandra, Design by Accident: For a New History of Design. Berlin: Sternberg Press.
  4. 4. Benjamin, Ruha. 2019. Race After Technology: Abolitionist Tools for the New Jim Code. Medford, MA: Polity.
  5. 5. Rodgers, Paul A., Craig Bremner. 2018. “​The Design of Nothing: A Working Philosophy.” In Advancements in the Philosophy of Design, editado por Pieter E. Vermaas and Stéphane Vial, 549–64. Design Research Foundations. Cham: Springer International Publishing. https://doi.org/10.1007/978-3-319-73302-9_25.
  6. 6. Susan Stewart coloca em termos mais sistemáticos: "a desistorização do design thinking isola o entendimento que informa o ato de design de qualquer entendimento das trajetórias temporais das quais ele participa." Susan Stewart, 2020. And So to Another Setting….” In Design and the Question of History, editado por Tony Fry, Clive Dilnot and Susan Stewart, 275–301. https://doi.org/10.5040/9781474245890.
  7. 7. Manzini, Ezio. 2015. Design, When Everybody Designs: An Introduction to Design for Social Innovation. Tradução de Rachel Coad. Cambridge, MA: The MIT Press.
  8. 8. Caso consideremos políticas públicas "progressistas" como uma forma de design, reconheceremos um ímpeto similar para o apagamento, em ainda mais explícitos termos: "Há um entendimento no qual progresso econômico rápido é impossível sem ajustes dolorosos. Filosofias antigas devem ser descartadas; velhas instituições sociais devem desintegrar; amarras de casta, crença e raça devem arrebentar; e um grande número de pessoas que não conseguem acompanhar o progresso deverão ver suas expectativas de vida confortável frustradas." Nações Unidas, Departamento de Questões Sociais e Econômicas, 1951. “​Measures for the Economic Development of Under-Developed Countries.” http://digitallibrary.un.org/record/708544.
  9. 9. O campo da programação criativa provém um bom exemplo de design não-redutor. Processing, uma das principais linguagens de programação deliberadamente concebidas com designers e artistas em mente, é parte de uma história rica de experiências nas quais o design estabelece pontes entre campos de conhecimento diversos. Emergindo a partir da "cultura de laboratório" do MIT, na qual Muriel Cooper, um deisgner gráfico, tinha um papel de liderança, o Processing deu origem a uma ampla comunidade de fazedores e pensadores que vão além da busca pela eficiência da maior parte da cultura da computação. Ver Levin, Golan, e Tega Brain. 2021. Code As Creative Medium: A Handbook for Computational Art and Design. Cambridge, MA: The Mit Press.


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