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ESCRITOS

espectro //


Conta-se de um poeta viajante que, flagrado em ocasião serendipiosa, cantava os versos:


estrito espectro, espio,
em posto silêncio,
uns alvos altivos, vivos,
que de mim não têm rumor.

espectro esquizo, espremo.
deslizo espaços, escorro.
exploro paredes por êxtases,
gozos vencidos, escarros, esporros.

espécie de espectro, existo
sem aspecto, sem efeito.
antigo quanto possível,
e no mesmo presente preso.

espúrio espectro, examino
o vento dos séculos que,
neste palco, do mundo fez outros.
de mim, o mesmo.

esquizo espectro, especulo:
haverá um espelho,
por risco profundo,
sórdida imagem, irmão
ou semelhante?

no sangue que me falta:
espólio da morte – o vazio.
tivesse corpo, em improvável dádiva,
primeiro momento: suicídio.


Garante o poeta: há entre nós uma alma desencorporada.

Enxerga e ouve, como nós. Lembra, entende, imagina, especula — como nós, vivos. Mas não tem corpo. Escapa.

Sem corpo. Apesar de sujeito à mesma disjunção eu/Outro conhecida popularmente como individualidade ou consciência, sem corpo. Por isso, não é capaz de tocar, causando movimento de objetos. Não é capaz de realizar mesmo os mais sutis sopros e ruídos.

Sem corpo. Sem voz. Não há suficiente superfície material, constituída de átomos e moléculas, capaz de desviar a luz em qualquer medida — sem aspecto ou aparência. Vaga prisioneiro da condição de espectador.

Não tem efeito no mundo. Não tem desígnio, não tem ação possível. Espectro.

Sua memória é uma neblina tão espessa que não se enxerga 200 anos distante, por isso não tem ideia clara de sua idade. Presume milênios.

É dele uma espécie de semi-presença. Está limitado ao lugar — um ponto no mundo; e embora viaje a seu próprio ritmo e limitação, não há canto nem canção que não conheça a ponto do mais desesperador tédio. Não dorme nem acorda: existe numa camada pouco abaixo da superfície do consciente.

Entende dos homens as histórias e os desentendimentos. Dos mais sinceros amores e das mais horríveis guerras é testemunha. Sente que, em um passado distante, talvez possa ter se importado. Quem sabe, num passado ainda mais distante, não tenha sido também um homem?

Se é de sua natureza perceber e não ser percebido, não tem como saber se há pares seus. Assim como não é percebido, não haveria razão para que enxergasse outros como ele, ou mesmo que deles tivesse qualquer rumor. Então, mesmo que muitos, cada um fatalmente absorvido na solidão mais profunda e eterna.

— É isso que nos tornamos quando morremos?

— Não imagino inferno mais possível.



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