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ESCRITOS

as dimensões materiais do necrobrincar //


No meio da abundante oferta de memes e notas escatológicas que a internet nos oferece diariamente, um vídeo específico foi capaz de me botar diante do abismo com singular terror. Rendeu-me a ocasional realização sobre uma nova dimensão ou escala do trauma social deste país, evento cada vez mais raro numa realidade cicatrizada pela banalização das ameaças existenciais. Deixou-me profundamente triste.

No vídeo, dois meninos com idade próxima a 10 anos encenam uma abordagem policial violenta utilizando pistola de brinquedo e a colaboração muito bem treinada de um pinscher que encarna o papel da vítima.



gif em que criança encena um enquadro policial em um cachorro.
A simplicidade do esforço de produção não prejudica em nada a ambientação da cena.


Vida de cão: a leitura do imaginário movido por esta singular esquete poderia recuperar algo do desespero animalesco — neste papel do violentado seria difícil imaginar ator melhor escalado, com semelhante linguagem corporal e gancho metafórico. Uma leitura como esta revelaria a profundidade simbólica articulada tão naturalmente pela dupla, e até poderia se aliar ao que na esquete se lê superficialmente como claque, como comédia. Mas não é dessa tal profundidade que desejo falar, e sim das semelhanças que me recuperaram à memória outra ocasião — e que me trouxeram tão agudo pesar.



pistola de papelão, cano de rifle de papelão e página impressa sobre superfície de pedra.
Armamento em papelão.


Em outubro de 2019 visitei a galeria reocupa, da ocupação 9 de julho, em São Paulo. Entre as experiências artísticas mais potentes que tive em anos recentes, a que ganha relevância aqui jazia numa discreta saleta, forrada de azulejos e equipada com balcão de granito. Sobre a pedra repousavam três réplicas de armas de fogo feitas em papelão e tinta, além de uma folha impressa oferecendo o chocante contexto: estas armas tinham sido feitas por uma criança de 10 anos.



relato presente no espaço expositivo.
A totalidade do contexto fornecido no espaço expositivo.


Nesta época eu trabalhava acompanhando atividades paradidáticas que envolvem construções manuais, em contato direto com crianças de mesma idade, mas de condição social oposta. Em comparação com os pré-adolescentes mais ricos do Brasil, este menino demonstra uma minúcia e refino motor excepcionais para a idade. Domina em sua própria carne o uso de medidas, as ferramentas de corte e a tridimensionalidade de seus manufatos. Alcança um resultado que supera o repertório de criação manual da maioria das pessoas adultas, facilmente. Mais que isso, o relato deixa claro que o fazer (assim como o triste objeto de seu fascínio técnico) movimenta profundamente seu desejo. Lhe dá prazer, lhe visita em sonho. Raramente seus colegas mais afortunados traziam para os fazeres tão intenso e genuíno entusiasmo.

Hoje, os mais conceituados colégios particulares do Brasil articulam espaços maker: experiências do fazer manual alinhadas a uma direção teórica e política dos estadunidenses que falam de aprendizagem criativa, construcionismo, abordagens ativas, e coisas parecidas. Sob um comedido pathos neoliberal, passam também algumas noções fundamentais sobre a relação entre as pessoas e as coisas que elas constroem. Se reconhece, em suma, que o aprender (como o viver) é uma atividade apaixonada, que é necessário o entusiasmo e o prazer. Também se enxerga o valor da dimensão material e sensório-motora no empreendimento educativo. Nada que configure novidade para a Psicanálise ou para a Arquitetura — afinal, como a Arte e a técnica já desconfiaram, desenhar (e, por imprudente extensão, projetar e construir) é um demorar-se, um desejar; como também um enrusgar-se, um cortar, uma impressão ou carimbo mútuo que nos conforma à espelho do que é conformado, como molde e contramolde.

Estas dimensões refinadíssimas dos processos cognitivos estão presentes quase como exemplos tanto no vídeo da abordagem policial a um cachorro quanto nas armas de papelão. Mas, nessas ocasiões, o que grita não é o virtuosismo de seus autores; e sim, com agravo, o domínio temático — quais são as imagens específicas que povoam esses devaneios infantis? — São as do contato íntimo e direto com a violência; não a que se vê na televisão, mas uma cotidiana e ubíqua. A violência tem uma dimensão material que estes meninos experimentam em primeira mão, uma materialidade que está presente nos devaneios técnicos sobre o instrumento de morte e também na performance corporal e simbólica do genocídio policial. Quer dizer que o imaginário da violência, nestes dois casos, exerce influência cosmogônica no fazer destas crianças; e mais do que isso, colonizou delas o desejo.

Esta é a escala do trauma social que estamos vivendo; ou ainda apenas parte dela.

mobilizar as imagens de nosso sofrimento

Entre 2014 e 2015, Pedro Paiva (melhor conhecido pelo username mais ódio menos playstation) ministrou uma oficina de jogos virtuais para adolescentes em condição de privação de liberdade em Porto Alegre. As situações jogáveis produzidas foram compiladas e publicadas sob o título “Esses Games Violentos: Proibidão”, mas não sem intensa polêmica institucional. Isso porque o conteúdo temático mobiliza o imaginário da violência entre o tráfico de drogas e os encontros militarizados com a polícia. Com títulos como “Assalto a Banco” e “Caixão e Vela Preta”, os games oscilam entre a glorificação da morte e uma leitura reflexiva a respeito do universo dos autores.



Tela de “Guerra Entre Gangues”, de Manelao, Puga, Zoio (pseudônimos) e Paiva.
Tela de “Guerra Entre Gangues”, de Manelao, Puga, Zoio (pseudônimos) e Paiva.


A ocasião, posso apenas especular, gerou uma pergunta singular a respeito do papel do educador. Como lidar com repertórios imaginativos tão profundamente fundados em uma cosmogonia da violência? A resposta institucional foi proibir — esta produção não pôde ser veiculada nos espaços institucionais, e a oficina não veio a se repetir posteriormente. A resposta de Paiva, no entanto, foi oposta: mobilizar ativamente esta imaginação, trazê-la para o domínio dos artefatos culturais. As obras, que num primeiro momento parecem se encerrar num heroísmo do crime, revelam dimensão crítica e sensível sob uma leitura mais cuidadosa.

Não seria o caminho para superar estas imagens escalá-las na produção material de quem as vive no próprio corpo? Construir imaginários utópicos deve envolver circular estes que nos são mais profundamente dolorosos? Examiná-los, compreendê-los?



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