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ESCRITOS

o anel //


Eu não queria. Considerava aquilo uma reverência complacente a uma tradição sem sentido, ou ainda (como frequentemente retratado na ficção) um artifício material para conter impulsos adúlteros — uma prisão simbólica. Desnecessário.

Ela insistiu. Disse que para mulheres era diferente; que cumpria uma função de comunicação não-verbal e evitava abordagens desagradáveis. Decidimos por tê-los.

Escolhemos o modelo mais discreto possível: uma estreita banda de prata de bordas arredondadas e sem detalhe algum. Nada foi gravado.

Em cumprimento ao manual vernacular, deslizei-o em volta do anelar direito assim que o tive em minhas mãos. Ela fez o mesmo. No começo, aquela porção metálica parecia constranger os movimentos da minha mão. Rapidamente me acostumei, no entanto, e sua presença era constante — à exceção dos regulares treinos de artes marciais e esporádicas escaladas.

O objeto foi, aos poucos, tomando uma feição mágica, fetichista. À medida que flutuava entre o consciente e o inconsciente, sua presença física preenchia o espaço deixado quando ela estava ausente. Assim cresceu em peso e importância, lembrando da permanência de nosso enlace mesmo em momentos de distância.

O dela, rapidamente, passou a viver menos tempo em seu anelar. Era removido para dormir, tomar banho e trabalhar na cozinha, além de outras situações que exigiam uma maior aplicação da destreza ou que certamente sujariam as mãos. nestes intervalos, ocupava qualquer canto de mesa, peitoril ou aparador; por vezes sendo esquecido por alguns minutos ou horas.

Depois de alguns meses, passaram a habitar as mãos esquerdas.

Do peso simbólico, com justeza, espera-se alguma simetria. Os momentos em que ela não o tinha em seu dedo foram ficando mais frequentes, e agora se seguiam de períodos em que o dávamos por perdido; para horas depois ser encontrado numa pia, criado-mudo ou vão de sofá. Incomodou-me, não pelo lapso momentâneo da mensagem não-verbal ou porque a prisão simbólica se rompia. Incomodou-me porque esperava que, a justa simetria, o objeto em seu dedo me representasse, que fosse minha presença na ausência.

Então, numa dessas ocasiões de perda, seguiu-se horas e dias sem vê-lo. Em minha mão seguia o memento; o dela, por mais de uma semana, não encontramos. Duas ou três vezes falamos e nos desentendemos:

— Porquê está reclamando? Você nem queria usar, no começo!

— Você insistiu, e agora não tem mais valor?

Estávamos ambos certos. A vida, no entanto, solicitava nossa atenção, e esse incômodo pequeno perdia importância no cotidiano. Como de costume, eventualmente seria encontrado.

Certa manhã a cozinha abrigou um mau cheiro. Havia um pouco de lixo acumulado, o removi. O cheiro seguiu, apurou-se no dia seguinte, e demandou maior investigação. Numa prateleira alta e esquecida — distante de nossas interações diárias e, portanto, distante de nosso consciente — havia um saco plástico, o claro culpado. Eu certamente não o havia colocado lá, então imaginei que durante o preparo de alguma refeição ou limpeza, ela teria encontrado na prateleira o pouco espaço provisório de que precisava, na miúda cozinha, para tirar o lixo do caminho enquanto fazia alguma outra coisa; e depois o esqueceu. Acontecimento comum para uma pessoa distraída, e pouca chateação para se resolver.

Então, ao retirar o lixo do esconderijo, ouvi o clique metálico do objeto perdido lançando-se ao chão. Estava na prateleira esquecida da cozinha, abaixo do descarte esquecido.

Não suponho que tal arranjo tenha se constituído de propósito, intencionando uma semântica de agressão. Também não suponho que ambos esquecimentos aconteceram no mesmo dia — a semana e meia que passamos procurando teriam tornado muito mais dramático o cheiro. Mas há, sem dúvida, algo de relevante num movimento que se repete sem demandar consciência e, portanto, sem ativar a memória. Ao trabalhar na cozinha, retira-se o indesejado, o sujo, encontrando qualquer espaço ocioso para abrigá-lo provisoriamente.

O que há de simbólico pode ser lido como presságio. Repetiu-se duas vezes, em ensaio, o mesmo movimento: retirar o indesejado sem ao menos mantê-lo na memória. Da primeira vez, com o objeto que deveria estar assumindo meu lugar; da segunda vez, com algo que comigo guardava alguma relação metafórica em sua consideração. Da terceira vez não seria ensaio. Repetiria-se, propriamente, comigo.



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