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ESCRITOS



gamificação: contornos e aplicações do jogo na escola, no trabalho e na cultura //





Entre 1926 e 1930, o arqueólogo inglês Leonard Woolley escavava o cemitério real da cidade suméria onde, segundo a bíblia hebraica, teria nascido o profeta Abraão: a cidade de Ur. Os nobres deste lugar, no século 25 a.C., eram sepultados juntamente com alguns de seus pertences mais estimados; e no meio de jóias, armas e instrumentos musicais, encontrou-se tabuleiros de jogos com peças em formato de disco e dados tetraédricos. O jogo perdido para o tempo passou a ser conhecido como “Jogo Real de Ur”. Desde então foram encontrados tabuleiros similares (e com eventuais variações) da ilha de Creta até o Sri Lanka, provando que o jogo manteve-se popular por pelo menos dois milênios. Apesar de algumas notadas influências em jogos de tabuleiro que seguem vivos (como o gamão e, indiretamente, o xadrez), a maneira de jogar permaneceu desconhecida e era muito especulada; até que Irving Finkel, curador do museu britânico, traduziu em 1982 a escrita cuneiforme de um tablete de argila do século 2 a.C. Trata-se de uma carta de um astrônomo babilônio a seus amigos gregos, contendo instruções complexas para a maneira de jogar de seu tempo. O documento hoje é considerado o manual de instruções mais antigo que se tem notícia, e permitiu que se jogue novamente o jogo que, durante quase toda a era cristã, não era sequer conhecido.1

Huizinga, em Homo Ludens2, defende que há algo de ancestral na experiência do jogar, algo anterior ao humano, inclusive. Do brincar que se estrutura numa experiência de fantasia, que aparece espontaneamente no cão e na criança, a partir da emergência de comportamentos regrados, referenciados fora da realidade mais basal. Do brincar que, num processo de formalização em regras e modos de jogar, gesta o esporte, evidentemente, mas também o direito, a política, a economia como jogo do dinheiro. O jogar ensaia condutas que, para além do espaço da escola, formam modos de ser no coletivo, estabelecem relações de pertencimento e lugar social, determinam a divisão do trabalho — processo formativo, apropriadamente, portanto inegavelmente educativo. Jogar produz um pequeno mundo com sua própria metafísica, populado por imagens refletidas do mundo real: do cerco medieval, representado no xadrez, até as hiper-realistas (sobretudo visualmente) representações de esportes ou guerras apocalípticas que são populares nos videogames.

A fidelidade das representações nesses jogos virtuais pretende aproximá-las de imagens gravadas em filme ou vídeo, a ponto de confundir genuinamente os incautos: a emissora Jovem Pan News recentemente cometeu erro editorial perigoso e curioso, quando exibiu imagens geradas em gráficos de videogames como cenas reais de ataques russos à Ucrânia, no calor do conflito em fevereiro de 2022. A TV Record reproduziu a matéria com a mesma imagem, repetindo uma gafe que já ocorrera em 2017, quando um de seus apresentadores mostrou imagens do simulador forza motorsport, onde uma limusine fazia curvas alucinantes em marcha-ré, explicando equivocadamente que se tratava de um teste para motorista do presidente estadunidense.4



JP parece mais preocupada com as oportunidades financeiras surgidas da guerra do que com a integridade de um jornalismo que mostre imagens reais do que está dizendo.


A presença histórica e a influência das experiências de jogo são, nesses relatos, apenas parcialmente exemplificadas. No exame do imaginário envolvido pelo jogar, vemos a força da interpretação de Huizinga a respeito, inclusive, da dimensão educativa do tema. O ambiente de jogo constitui um treinamento particularmente efetivo para o exercício do agir, educando também a vontade ao colocar o jogador diante de objetivos, escolhas, ganhos e riscos. Jogos são poderosos mobilizadores de agência e desejo, propagadores da noção do indivíduo que manipula o mundo em seu favor.

No contemporâneo continuamente permeado pela experiência lúdica, abundam as invenções técnicas do jogar, e em quase todo discurso otimista de futuro elas só haverão de multiplicar-se — por vezes como demanda implacável do progresso, outras vezes como promessas de liberdade num mini-mundo de fantasia. São servidores de jogos online multijogadores, cenários competitivos milionários de esportes eletrônicos, experiências em realidade virtual proporcionadas por aparelhos vestíveis cada vez mais densos de sensores e resolução, jogos com sistemas de interação mediados pela tecnologia de blockchain, metaversos e uma infinitude mais. Entre uma porção de promessas superlativas, frequentemente se celebra a presumida vocação de cada uma dessas soluções técnicas para aplicação na educação, em abstrato. A premissa é que percursos formativos podem ser indefinidamente gamificados — transformados em percursos lúdicos sob forma de jogo, excitando o aluno e alcançando algum dado arbitrário interpretado como indicador de eficiência de aprendizagem5.

Assim, um fetichismo técnico pelo futuro consolida-se em paralelo com um imperativo por gamificar a pedagogia. As experiências postas em prática, em geral, consistem em transformar em procedimento a lida prática do professor, sob percursos milimétricos mediados por máquinas cada vez mais complexas. Como norteamento abrangente, via de regra, estas aplicações práticas oferecem pouco menos do que um currículo de habilidades e competências desenhado a contra-molde do que se espera no mercado de trabalho, ressoando a visão utilitarista da escola como formadora de trabalhadores.

Ora, é conhecida a importância formativa do jogar. Huizinga ecoa pedagogos anteriores, como Claparède em 1905 e Decroly em 19146, e há possibilidade de identificar discussões mais antigas. Mesmo para uma cosmovisão da escola comprometida mais amplamente com o mundo da cultura e a sociedade, os jogos são recurso valioso para o professor. Não se justifica, parece-me, tomar como objetivo metodológico uma versão instrumentalizada de tal constatação — empacotada em produto para docilizar alunos e obter deles maior rendimento acadêmico, para engajar emocionalmente consumidores de serviços por aplicativo e redes sociais, para extrair o máximo do desempenho individual de cada trabalhador no capitalismo de vigilância, ou ainda para mobilizar multidões em uma grande ampliação do acesso ao capital especulativo como jogo de azar. Ao longo deste ensaio, se pretende demonstrar exemplos de como cada uma dessas tecnologias sociais baseadas no brincar são a totalidade de que consiste o clamor recente pela gamificação.



uma re-valoração contemporânea do jogo na escola




Na educação, jogos digitais com propostas sandbox, — que abandonam o estabelecimento de objetivos bem contornados em favor de permitirem grande flexibilidade na maneira de jogar e ampla possibilidade de criação pelos jogadores — são atualmente muito celebrados como recurso pedagógico. O aluno torna-se mais do que consumidor dos mini-mundos virtuais tradicionalmente oferecidos pelo entretenimento digital, torna-se genuíno arquiteto de seus próprios mini-mundos. Muitos servidores de minecraft, por exemplo, são geridos por crianças que experienciam, com muito entusiasmo, representações simplificadas da física, senso de comunidade e convívio e a oportunidade de narrar a própria história; como também toda uma sorte de abuso psicológico possível em ambiente raramente monitorado por adultos.





A possibilidade de programar jogos virtuais utilizando software que gradativamente elimina a barreira de entrada para crianças é muito cara aos pais, que enxergam grande êxito acadêmico e boa perspectiva de futuro. Tais softwares são veiculados amplamente pela web 2.0, essa marcada pelo domínio das plataformas sociais que exploram o conteúdo criado por uma base de usuários-produtores, por sua vez remunerados em um leilão de anúncios mediado por algoritmo totalmente opaco7. É o modelo de negócios do YouTube e, em alguma medida, das demais redes sociais. Entre essas plataformas, o Roblox encontrou estrondoso sucesso investindo na disponibilização de um editor de jogos de uso muito facilitado.

A empresa, avaliada em cerca de 40 bilhões de dólares em sua abertura no mercado financeiro em 2011, conta exclusivamente com conteúdo produzido por seus usuários, atingindo a marca de 40 milhões de “experiências” (como são chamadas as aplicações interativas — os jogos — na plataforma). Numa demografia onde 67% dos jogadores têm menos de 16 anos (em dados de 2020), há multidões de crianças consumindo e produzindo jogos — trabalho real que contribui para o acúmulo de valor da companhia. As produções destas crianças são, assim como vídeos no YouTube, oferecidas num menu mediado por algoritmo de redes neurais otimizado para tempo de engajamento, o que resulta numa distribuição abismal de atenção (e, consequentemente, remuneração) favorecendo pouquíssimos títulos. Envolvidos pela bruma do empreendedorismo, os criadores são estimulados a pagar por anúncios de seus jogos em canais oficiais — o que, como qualquer transação com a empresa, envolve adquirir a moeda virtual (robux), sob índices de conversão que favorecem violentamente a compra em grandes quantidades. Com aplicação de taxa de mais de 75% da remuneração de cada jogo para a plataforma, e levando em conta o altíssimo limite mínimo (equivalente a mil dólares!) para o saque de robux de volta em dinheiro real, a realidade é que a vasta maioria dos desenvolvedores nunca recebe nada.8



interface do mercado de colecionáveis do Roblox mostra linhas de histórico de preço, estimulando crianças a especular em produtos puramente virtuais.


Outra face do ecossistema roblox é o mercado de avatares, no qual robux podem ser trocados por adereços de personagens virtuais. Uma classe destes avatares é denominada “colecionáveis”, itens de escassez artificial cujo preço se baseia na raridade e no interesse da comunidade, estimulando um comportamento de especulação totalmente dependente de uma moeda controlada pela própria empresa. Mais uma fonte de receita relevante para a companhia são as inúmeras possibilidades de transação que podem acontecer no interior dos jogos, sob desígnio de seus programadores e com mínima moderação. Robux podem ser requeridos em praticamente qualquer contexto quando jogando, o que permite transferir recursos virtuais entre jogador e criador sob uma taxa acentuadíssima.

Com uma base diária de usuários nas dezenas de milhões de menores de idade, a plataforma Roblox populariza a incursão no desenvolvimento de software profissional e mantém alargado fluxo de caixa através de leilões especulativos de objetos virtuais. Assim, dramaticamente exemplifica como a gamificação, apresentada amplamente como ferramenta pedagógica que pretende "tornar relevante" o ensino é facilmente apropriada como tecnologia de exploração do trabalho. A corporação cresce vertiginosamente mobilizando trabalho infantil análogo à escravidão.

Convém perceber que o canto da sereia pode funcionar, com muita similaridade, também com adultos.



a gamificação se espalha a outros domínios




O Washington Post noticiou em 2014 o esforço pela gamificação de postos de trabalho de baixa qualificação9. UUm exemplo é a Amazon, gigante do varejo estadunidense, onde comemoram-se recordes de produtividade dos funcionários obtidos graças à gamificação da jornada de trabalho. Em telas espalhadas pelo ambiente, os trabalhadores completam tarefas simples em jogos digitais com mecânica relacionada a sua função; tudo em troca de aparelhos eletrônicos caros (para o maiores pontuadores), ou "swagbucks", moeda inventada usada exclusivamente em troca de material de merchandising da empresa10.





A gamificação tem sido também uma tendência no campo do design de experiência do usuário. Engajar o visitante de um site ou o usuário de um app a cumprir tarefas arbitrárias em troca de pontos, de progresso visual numa barrinha, de insígnias comemorativas de conquistas — tudo isso parece contribuir para uma jornada de usuário mais frutífera na leitura de seus criadores; ou seja, em geral, mais lucrativa. Para um aplicativo como o Duolingo, que se sustenta com a efetivação do ensino de línguas, o resultado evidencia-se pela régua pragmática da fluência — que nesse caso alinha-se um tanto com o lucro. Há momentos, no entanto, que a gamificação cumpre funções menos nobres.

A Serasa Experian é dominante no serviço de análise de crédito individual, e conta com amplo uso no comércio nacional. Sua métrica de confiabilidade sobre os devedores pessoa física, o score Serasa, pode ser consultada em seu site a partir do CPF. O serviço, no início, era básico e apenas informava um número entre zero e mil, correspondente à confiabilidade daquela pessoa como bom pagador. Uma visita à altura de março de 2022 revela atualizações como uma carteira de “conquistas” assemelhadas a insígnias de ginásios pokémon, níveis de perfil e toda uma gramática emprestada dos jogos digitais. Para ganhar uma das insígnias, é necessário voluntariamente correlacionar os dados financeiros que a empresa já tem com contatos telefônicos; para conquistar outra, o requisito é exercitar o direito de bloquear o acesso livre a seus dados, tendo um pouco mais de controle sobre que pessoas e empresas estão consultando seu score. Este direito é exclusivo para pessoas que assinam o acesso premium. Uma breve reflexão sobre tal modelo de negócios — no contexto de um grande mercado internacional de dados pessoais, onde o acesso a crédito é o que lhe garante alguma cidadania — constata imediatamente a assimetria, e permite traçar um paralelo com aquele tipo bem peculiar de proteção comercializada por caricatos líderes de máfia.



a interface se assemelha a um labirinto informacional meio kafkaesco, onde cada curva guarda um desafio trivial e uma recompensa absolutamente sem valor, mas apresentada com entusiasmo.


É relevante notar que cada elemento simulado de jogo aparece precisamente embalado no estado da arte do design de interfaces, a esta altura; proporcionado pela disciplina do UX design em muitas de suas consagradas soluções formais. O encontro não é aleatório: acusa a adoção da chave da gamificação envolta no inebriante e envelhecido odor de inovação permanente neste campo. Para os UX designers, gamificar assume modo imperativo assim como em discursos na escola, dessa vez transformado em novo item num arsenal metodológico que foi desenvolvido a partir da psicologia behaviorista, passando por uma denominação hoje em dia convenientemente esquecida (dada a evidente aberração ética!): design de comportamento11.

Há no campo uma leitura de que o que acontece, em casos como estes, é um descompasso entre teoria e prática, entre um momento em que as coisas são pensadas em abstrato, idealizadas, e um momento em que são aplicadas no "mundo real", incompreendidas em sua base política. Levanta-se a hipótese de que esse descompasso não é fruto de um abismo metodológico entre a teoria e a prática, mas sim natural desdobramento de uma própria teoria que, no melhor dos casos, é ingênua a respeito de seu lugar histórico e de sua dimensão discursiva como matéria política. Os discursos que mobilizam são, por si, transformações sociais, e não apenas prefigurações, intenções desmaterializadas, sem efeito. Estão determinando as condições do espaço em nossas telas, aulas e postos de trabalho.

A gamificação, como movimento, não é nem apartada da teoria (entende-se aqui por teoria sua propagação enquanto mantra em veículos aproximados às universidades, disposta como uma entre outras ferramentas de ação pedagógica “inovadora”) e nem de sua consequência quando injetada no cenário da escola contemporânea em profunda crise histórica. Ao se justificar existencialmente a escola através de indicadores de avaliação, orientando-se numa perspectiva de desempenho, educar passa a ser dificilmente mais do que fazer com que os educandos assumam comportamentos desejáveis; comportamentos que, antes ritualizados como memorizar as respostas a questões específicas do conteúdo, hoje podem aparecer como desempenhar satisfatoriamente um papel num processo assemelhado a algum setor produtivo (coisa que a escola contemporânea passou a assumir o hábito de denominar projeto). No campo da educação, isso significa abandonar o conhecimento como matéria principal da pedagogia, substituindo-o por grades curriculares baseadas em habilidades e competências. Mas podem também ser desejáveis os comportamentos, numa arquitetura de escolhas, que favoreçam os lucros de uma companhia que mantém algum aplicativo; e daí se entende o interesse pela gamificação da interface de plataformas de serviço, como no ubíquo exemplo do Uber.

Outro movimento que se apresenta é que toda a tecnologia projetiva que possibilitou obras de arte como civilization e fenômenos como minecraft em seus espaços de ação (jogos digitais com minuciosas ou expansivas experiências educativas) hoje é reciclada, em toda a constituição disciplinar do game design e da gamificação, para se aplicar (como no caso da Amazon, da Serasa ou mesmo do Instagram) a cenários pragmáticos onde não importa o que se está aprendendo, apenas que algum indicador de produtividade, atenção coletiva ou lucro está crescente. Aponta para um cenário de convergência entre as disciplinas do design de jogos e design de comportamento no contexto da economia da atenção, empenhadas no refinamento de tecnologias de controle.

O caldo engrossa com a impositora presença da tecnologia do blockchain, uma espécie de tabelionato não-baseado em confiança e descentralizado, que permite um registro geral, via consenso algorítmico, de “o que pertence a quem”. Engrossa o caldo quando entram em jogo (literalmente) os NFT’s.



gamificação na vanguarda em expansão da financeirização da vida




Celebrados amplamente como forças descentralizadoras da infra-estrutura de dados da internet (apesar de, paradoxalmente, realizarem maior tendência de centralização), os Non-Fungible Tokens se justificam como uma cosmogonia fundamental do sentido de possuir algo, eliminando totalmente a necessidade de uma noção autoritária de confiança (normalmente executada pelo Estado) do processo notarial. A novidade, que vem na esteira de uma visão utópica da web 3.0, rapidamente se concentra em plataformas centralizadas a modelo da web 2.0, e efetivamente se realiza nela12. Promete uma expansão do capital especulativo, funcionando tipicamente como uma pirâmide financeira em flutuações de mercado condicionadas por absolutamente nada mais do que propaganda e entusiasmo.

Os NFT’s são possibilitados pela tecnologia blockchain, cujo uso principal são as criptomoedas. Os dados sobre transações de valores e bens totalmente virtuais são adicionadas a uma lista mantida por uma rede de computadores rodando, com crescente redundância (e a custos energéticos exponenciais), algoritmos desenhados para serem extremamente difíceis de completar — com o objetivo de garantir uma escassez artificial e um modelo de consenso descentralizado. A partir de algum regramento específico, a blockchain remia os atores da rede que têm maior disposição de recursos computacionais, portanto constituindo ambiente naturalmente propenso a acirramento da desigualdade13. Além de bitcoins e outras criptomoedas, é possível cadastrar neste tipo de rede espécies de recibos digitais que, via de regra, apontam a propriedade de um conteúdo digital (geralmente uma imagem) hospedado em um servidor terceiro na web tradicional. Os ativos cadastrados assim são os chamados NFT’s, e possuem uma valoração totalmente determinada pela lei da oferta e demanda, gerando um mercado especulativo desenfreado, marcado por fraudes e esquemas de manipulação; mas que costuma ser anunciado como uma oportunidade facilitada de enriquecimento súbito.

O grande interesse por este tipo de tecnologia vem na esteira de uma expansão da popularidade de sites de apostas14 e do advento de plataformas de investimento em bolsas de valores, que buscam atingir uma grande quantidade de usuários através da eliminação (ou camuflagem) das tradicionais barreiras de entrada, como os valores mínimos de investimento. Com isso, amplia-se a participação de pessoas de classes sociais mais baixas, sob a fabulação de que tal tipo de serviço constitui uma espécie de porta sempre aberta à ascensão social.





Mercados especulativos dependem que as pessoas se interessem por comprar coisas — e, no caso dos NFT’s, pouco mais que uma URL é a coisa a se comprar, representação da mercadoria que em pouco supera a promessa de realização do capital. Excitar as pessoas a comprar caríssimas ilustrações digitais (portanto prontamente copiáveis) de macacos em situações esdrúxulas provou-se surpreendentemente fácil, mas o mesmo encanto não se reproduz com facilidade para outros animais ou memes. A tática foi, então, entender estes NFT's como elementos de um jogo. Assim, eles assumem sua dimensão de representação num ambiente de comportamento regrado; recebendo, dentro de seu universo, um valor maior, contextual. Criam-se os jogos NFT, utilizando recibos de propriedade cadastrados em redes de criptomoedas associados a personagens ou outros tipos de objetos virtuais em um jogo online. Esta fronteira permitiu que um grande campo de conhecimento aplicado, o design de jogos, atuasse em favor da ampliação dos mercados especulativos.





Economias virtuais são realidade há pelo menos 20 anos — portanto antes da tecnologia blockchain. São presentes principalmente no gênero dos MMORPG’s15, sendo o Tibia16 um dos mais longevos exemplos de economia virtual continuamente ativa. O conceito é interessante e empolgante: viver e participar numa mini-economia de fantasia, atrelada a um mundo virtual complexo e imersivo; uma economia transformada em brinquedo, de onde se extrai divertimento nas interações entre jogadores humanos. Quando circunscritas em si mesmas (dependentes de uma representação de trabalho como dedicação de tempo ao jogo — em efeito uma acumulação primitiva), essas economias já demonstram tendências acentuadas de inflação — que, é justo notar, advém de sua modelagem simplificada, baseada na teoria liberal do dinheiro. Nova riqueza só é adicionada à economia a partir de uma relação exponencial com o tempo de jogo (entendido como trabalho); e a riqueza estabelecida muito raramente é destruída da economia. O cenário é de um mercado onde os maiores acumuladores são aqueles que dedicaram mais tempo ao jogo, e a moeda corrente (num regime inflacionário) veicula um perfeito funcionamento da lei de oferta e demanda, onde a escassez de certos artigos virtuais de interesse é garantida pela mecânica do jogo impressa em seu código-fonte.

Quando a economia virtual abre maiores portas de contato com a economia real — como quando oferece "contas premium" com vantagens, ou como quando permite a compra e venda de recursos internos do jogo com moeda nacional — abrem-se múltiplas avenidas para exploração de incautos vulneráveis a discursos de enriquecimento fácil. As maneiras como os recursos internos do jogo se relacionam continuam sendo do monopólio de desígnio da empresa que mantém o sistema; o que constitui um poder total de arbítrio e manipulação daquela economia. Ainda assim, se defende o saldo benéfico que um jogo com uma economia paralela e conversão bidirecional entre recursos virtuais escassos e dinheiro real. Defende-se que esta arquitetura permite um modelo em que o jogador é capaz de obter renda com o jogo — o popular modelo play-to-earn. A escassez dos recursos é garantida, então, com NFT’s; e assim se transforma em trabalhador o jogador.



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Exemplos atuais de jogos NFT se multiplicam aos milhares, e o que condiciona o sucesso de poucos deles é um movimento de especulação anterior ao lançamento, que pode garantir idealmente um bom valor inicial dos ativos do jogo; ou, para a maioria dos “projetos”, um fim súbito e precoce, recheado de fraudes. Este é um modelo de crescimento similar ao uso dos NFT’s em projetos como o Bored Ape Yacht Club, como ativos de “arte digital”. O ano de 2021 foi, até hoje, o mais prolífico em jogos NFT; um deles foi o Crypto Cars, que obteve um início estrondoso, grande entrada de usuários (dentre eles 30 mil brasileiros), e uma queda acentuada que culmina em fraude operada pelos próprios criadores do projeto17. Outro, especialmente popular, foi o Axie Infinity, que segue ativo e viável para uma base de jogadores que, aceleradamente, se profissionaliza, em especial no terceiro mundo.



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Para participar deste jogo, é necessário um investimento de valor equivalente a milhares de reais. A quantia paga por um time de pelo menos três Axies, espécie de pokémons de características randomizadas atrelados a um token NFT único. Com este time, o jogador pode participar de batalhas contra outros jogadores e ser recompensado com “poções do amor”, recurso virtual que pode ser trocado, via criptomoeda, por dinheiro real. Como o investimento inicial é muito alto, há empresas terceiras que oferecem o aluguel de contas preenchidas de monstrinhos para jogadores vencerem batalhas e obterem sua renda em troca de parte dos ganhos — em geral 60% dos recursos gerados pelo esforço do jogador costuma ir para o dono da conta. Estas empresas configuram as chamadas scholarships, que recrutam participantes como se fossem funcionários, utilizando-se de currículos, entrevistas e testes de aptidão.18

O modelo de empresas que alugam ativos em jogos play-to-earn reproduz em farsa a divisão de classes sociais sob o capitalismo: os donos dos ativos exploram o trabalho de uma classe sem meios, obtendo lucro e determinando o valor dos salários. Tal modelo foi inaugurado nas Filipinas, onde se encontra a maioria dos jogadores de Axie Infinity fora dos Estados Unidos, e é adotado em outros países subdesenvolvidos, como o Brasil. Em economias nacionais muito fracas, o retorno baixo obtido com o trabalho no jogo constitui sã alternativa de atividade econômica. No entanto, como é natural em qualquer economia baseada em criptomoedas (como em esquemas de pirâmide), não há real geração de valor advinda dos cliques despendidos no jogo, apenas uma redistribuição dos valores previamente injetados naquele sistema. Aqui, só há crescimento econômico enquanto a entrada de novos jogadores for crescente (mais pessoas injetarem seus investimentos iniciais).19



o tom superlativo e emancipador do discurso em volta dos jogos NFT assume rapidamente um caráter distópico. play-to-earn19 é um filme que adquire muito mais valor se lido como de gênero mockumentary.


Ao que parece, o cenário de jogos virtuais em formato play-to-earn está em sua infância. Grandes e tradicionais companhias de videojogos, como a Ubisoft e a Konami, já lançaram NFT’s atrelados a franquias estabelecidas, sob um misto de crítica e apatia de sua tradicional base de clientes20 — sem dúvida a falha pode ser rapidamente superada numa próxima versão. Tibia, jogo detentor da economia virtual mais antiga ainda ativa, estuda maneiras de incorporar criptomoedas como forma de monetização adicional. Outras grandes empresas pretendem fazer o mesmo em breve, exercitando a ansiedade burguesa de estar entre os pioneiros de mercados muito amplos.







A imaginação da criança, que acumula pontos abstratos num fliperama cuja mecânica ela dominou, rapidamente devaneia trocar tais pontos por dinheiro real. Nas tecnologias da criptomoeda, tal devaneio desejante se materializa com aspecto monstruoso. Aqui, entender as dimensões filosóficas, sociológicas e pedagógicas do jogo acaba por instrumentalizar um conjunto de técnicas de projeto das experiências lúdicas, poderosas mobilizadoras do desejo ativo, cada vez mais presentes na vida cotidiana. Trata-se de uma convergência do design de comportamento (representado hoje pelo UX design) com o design de jogos, num contexto da economia da atenção. Sob o clamor positivo da gamificação, somos convidados a participar de mais uma revolução técnica; e o resultado não poderia ser mais capitalista: ampliação das possibilidades de exploração do trabalho e avanço da fronteira de financeirização.



tabuleiro de “The Landlord’s Game”, como descrito em patente de 1904.


O caso da invenção do Banco Imobiliário, um dos jogos de tabuleiro mais clássicos e populares, parece estranhamente relevante: foi criado em 1903 como The Landlord’s Game pela socialista Lizzie Magie, com a intenção de peça pedagógica para demonstrar a tendência monopolista inerente ao capitalismo. O jogo popularizou-se longe de sua intenção anti-monopólio, simplesmente porque parece ser divertido encarnar o papel de um bilionário — afinal, nas regras praticadas, o mais “competente” capitalista ali vence21. Ainda que num plano de fantasia, esse movimento exemplifica a crítica de Byung-Chul Han, para quem o imperativo da gamificação corresponde a uma apropriação do domínio do lúdico pelo capitalismo da emoção. O jogo, como atividade de tempo livre, originalmente encarna uma liberdade que é, sobretudo, uma liberdade do trabalho. Na sobreposição oximorônica do lúdico com o produtivo, dissolve-se o jogo como o Outro do trabalho, acentuando-se a dominação — “O ócio, que possibilitaria uma atividade casual e sem finalidade, é tomado pelo capital”22. Um exame contemporâneo dessa condição há de reconhecer, também, a contribuição de Vilém Flusser:

Esse novo homem que nasce ao nosso redor e em nosso próprio interior de fato carece de mãos (ist handlos). Ele não lida (behandelt) mais com as coisas, e por isso não se pode mais falar de suas ações concretas (Handlungen), de sua práxis ou mesmo de seu trabalho. O que lhe resta das mãos são apenas as pontas dos dedos, que pressionam o teclado para operar com os símbolos. O novo homem não é mais uma pessoa de ações concretas, mas sim um performer (Spieler): Homo Ludens, e não Homo faber. Para ele, a vida deixou de ser um drama e passou a ser um espetáculo. Não se trata mais de ações, e sim de sensações. O novo homem não quer ter ou fazer, ele quer vivenciar. Ele deseja experimentar, conhecer e, sobretudo, desfrutar.23



Examinar uma taxonomia do jogo poderá iluminar alguma possibilidade de superação de suas contradições?

Roger Caillois explora quatro “categorias fundamentais”. Agôn baseia-se na competitividade, nos jogos que forçam uma igualdade perante regras e premiam uma noção de mérito baseada nas qualidades do indivíduo — são a maioria dos esportes olímpicos e mais. Alea abole as diferenças entre os jogadores e entrega o resultado a partir de uma arbitrariedade do destino — são as apostas. Estas duas primeiras se equilibram nos gêneros de jogos de cartas, por exemplo, em que uma situação inicial de sorte (a mão que se tira no início) pode ser compensada por uma habilidade estratégica no decorrer do jogo. Semelhante mistura de agôn e alea também pode ser vista prontamente nos jogos digitais. Mimicry é o jogo de cena, é o teatro, a potência imaginativa, onde se usa uma máscara para aceitar uma realidade alternativa, de fantasia; os Role-Playing Games são uma convergência importante que demonstra a qualidade lúdica da cena. Com avatares e universos internos imersivos, a fronteira digital também atinge essa qualidade com singular primor técnico.

Ilinx é a última categoria:

[...] reúne aqueles [jogos] que se baseiam na busca da vertigem e que consistem em uma tentativa de destruir por um instante a estabilidade da percepção e de infligir à consciência lúcida uma espécie de pânico voluptuoso. De todo modo, trata-se de aceder a uma espécie de espasmo, de transe ou de aturdimento que destrói a realidade com uma soberana brusquidão.22



É o atirar-se ao poço profundo, é a própria velocidade, é o transe (religioso ou químico), é o grito, é a tontura, a embriaguez, o orgasmo. Os jogos da vertigem não apontam vencedores, oferecem apenas uma experiência alterna de perceber, sentir e agir. Diferente dos outros tipos, eles não estão, em absoluto, presentes nos esforços atuais rogados sob a denominação de gamificação — tanto em percursos formativos como nos domínios do mundo do trabalho. Também não se considera, no chamado design de experiência de usuário, trazer jogos da categoria Ilinx para o contexto da disputa de atenção nas miríades de interfaces que comandamos diariamente; e porquê? Seriam eles menores mobilizadores do desejo do que os outros?

Talvez por não operarem a partir do lugar da disputa de agências individuais; ou por não se colocarem a partir de uma estruturação mais conduzida. Talvez por resistirem ao galopante avanço da apropriação emocional imposta pelo capital através do chamado à gamificação, que tem transformado trabalhadores em jogadores e jogadores em trabalhadores. Essa ausência dos jogos da vertigem nos espaços descritos constitui um ponto de singular interesse, não como uma via a ser explorada propositivamente, crescendo e fortalecendo o movimento intenso em favor de gamificar; mas sim como espaço de ação contrário à linha hegemônica. Como constituir espaços de resistência, trazendo o jogo de volta ao lugar de liberdade do trabalho? Quais seriam as danças convulsivas que, no atual cenário técnico, poderiam nos botar em vertigem, nos botar diante de soberana brusquidão, recuperando um sentido do jogo inalienável pelo Capital?




  1. 1. Jogo Real de Ur e Tom Scott vs Irving Finkel: The Royal Game of Ur.
  2. 2. Huizinga, Johan. Homo ludens: O jogo como elemento da cultura. São Paulo: editora Perspectiva, 2019.
  3. 3. As dimensões materiais do Necrobrincar
  4. 4. Jovem Pan e Record exibem cenas de game para falar da invasão à Ucrânia
  5. 5. Bernard Charlot percorre uma discussão crítica atualizada da ideia de eficiência de aprendizagem em Educação ou barbárie?; Uma escolha para a sociedade contemporânea. São Paulo: Cortez, 2020.
  6. 6. DECROLY, Ovide; MONCHAMP, Eugénie. Iniciação à atividade intelectual e motora pelos jogos educativos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
  7. 7. A razão para essa opacidade pode ser defendida tecnicamente como uma espécie de efeito colateral indesejado da arquitetura de software baseada em redes neurais e aprendizagem de máquina, que necessariamente ofusca os exatos caminhos de decisão realizados por um procedimento algorítmico — já que ele não é programado da maneira tradicional e linear, mas “treinado” em enormes bancos de dados sob iterações “evolutivas”. Em outras palavras, um programador pode rapidamente se tornar incapaz de analisar e corrigir eventuais vieses emergentes no sistema, já que eles estariam operando a partir de um fluxo de controle irremediavelmente complexo; mas ao mesmo tempo entende-se que tal ofuscamento é completamente aceitável em troca do ganho extraordinário de poder e aplicabilidade de tais sistemas. Um exemplo dos vieses emergentes em algoritmos que incluem aprendizagem de máquina é a recente polêmica envolvendo a maneira como o twitter corta automaticamente para exibição as fotos submetidas à plataforma, de uma maneira que desconsidera desproporcionalmente rostos negros. — Twitter finds racial bias in image-cropping AI
  8. 8. https://youtu.be/_gXlauRB1EQ e https://youtu.be/vTMF6xEiAaY.
  9. 9. Does working in a call center have to be so miserable?.
  10. 10. Amazon expands gamification program that encourages warehouse employees to work harder.
  11. 11. Anna Bentes percorre a consolidação do desenho das interfaces das grandes plataformas de internet, em especial o instagram, em Quase um tique: Economia da atenção, vigilância e espetáculo em uma rede social. Na chamada economia da atenção, a construção das interfaces das redes é continuamente refinada com pesquisas que recorrem a uma neurofisiologia do comportamento, herdada desde a tradição behaviorista estadunidense.
  12. 12. My first impressions of web3
  13. 13. NFT e Cripto: Notas Fiscais e Moedas sem política e Line Goes Up – The Problem With NFTs oferecem visões críticas bem amplas e tecnicamente ancoradas sobre a questão dos criptoativos.
  14. 14. The internet turned “money” into a hobby
  15. 15. Massively Multiplayer Online Role-Playing Games, jogos digitais onde milhares de jogadores participam simultaneamente, dividindo uma realidade paralela com sua própria economia baseada, tipicamente, em tempo dedicado ao jogo e eventuais aportes de moeda real que os jogadores podem realizar.
  16. 16. Lançado em 1997, Tibia é um dos primeiros MMORPG’s, mas o que o torna notável é que ainda se encontra ativo e recentemente passando por uma intensa retomada de popularidade; o que leva a companhia CipSoft, sua criadora, a bater recordes anuais de faturamento.
  17. 17. Após a queda de um jogo NFT como este, é muito difícil encontrar, retroativamente, notícias factuais ou mesmo descrições sobre o colapso. Suponho que há esforço de SEO para retirar do ar análises desfavoráveis ao mundo das criptomoedas. O artigo "Jogo CCAR com 30 mil jogadores brasileiros e um provável Rug Pull" é a melhor descrição do projeto fracassado que pude encontrar, embora ainda bastante leniente quanto às consequências e condições do colapso.
  18. 18. Jogos em blockchain “play-to-earn” criam cenário propício para trabalho informal e precarizado, de Henrique Sampaio que percorre em detalhes a maneira como o Axie Infinity cria e mantém uma estrutura de trabalhadores-jogadores no Brasil, muito assemelhada à realidade Filipina. Também desenvolve uma excelente análise crítica que percorre pontos muito oportunos.
  19. 19. O documentário Play-to-earn: NFT Gaming in the Philippines mostra um pouco da expansão do Axie Infinity entre os filipinos, incluindo depoimentos dos próprios jogadores-trabalhadores. Infelizmente, um verniz de ideologia liberal pinta toda a situação como uma condição de superação individual da pobreza, discurso que os entrevistados reproduzem com certa alegria. Demonstra que mesmo uma fronteira técnica da exploração do trabalho pode ser vendida como uma ferramenta de emancipação econômica, numa versão digital de white-saviourism.
  20. 20. NFTs da Ubisoft são um fiasco e quase ninguém está comprando
  21. 21. Monopoly’s Anti-Capitalist Origins
  22. 22. HAN, Byung-Chul. Psicopolítica — O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: editora Âyiné, 2020.
  23. 23. Flusser, Vilém. O Mundo Codificado: Por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
  24. 24. Roger Caillois. Os jogos e os homens: A máscara e a vertigem. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.


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